segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Do dia em que eu tirei a minha licença poética

Não sei bem ao certo quando foi, mas me lembro como aconteceu. Geralmente a gente vai a um lugar para se obter licença de alguma coisa legalmente, em um departamento, cartório, escritório ou gabinete. No meu caso, o lugar veio a mim. Eu tava de bobeira, não fazendo nada de importante; eu estava ali num instante quando o lugar baixou em mim: num piscar de olhos me vi num lugar amplo de espaço, janelas envidraçadas vi, dessas típicas de prédios empresariais, sabe? Eu estava num andar, porém, não era cobertura, ou ao menos parecia não ser... Me peguei em pé perambulando, entre divisórias fui passando, e essas formavam pequenos cubos, todos ali reunidos feito pequenos favos naquela colmeia de gente curvada e aparentemente atarefada. Sim! Os seres que ali estavam, nesses cubículos, pareciam ser gente, ou alguma ideia de gente. Pois bem, me peguei andando, andando e parando de repente diante dum enorme balcão de informação. Eu me senti um anão, pois não conseguia ver quem, ou o que, estava doutro lado, mesmo eu nas pontas dos pés ficando. Mesmo assim, nessa angústia, senti uma sombra sobre mim me avaliando para logo em seguida me dizer para eu aguardar na fila. Da voz não me lembro o timbre, tampouco a textura, só me recordo do conteúdo impositivo dito a mim, assim sem mais ou menos. Olhei ao redor, procurando a fila. E a vi ali, à minha direita, um filete escuro, linha preta no canto do mundo, cadeiras sem apoio formando uma fileira de ombros sem ombreira e encosto. Fui até lá, a passos vagos, pois presa não era necessário. O ambiente parecia calmo, tranquilo por demais, todo branco-mármore e gesso-pálido. Me sentei na última cadeira, da direita pra esquerda. Ao meu lado, dezenas, centenas-centopeias de outras cadeiras sustentavam outros seres que eu não conseguia distinguir nitidamente quem ou o que eram. Pareciam seres amórficos em água turva, às vezes límpida, às vezes suja. Não dei trela ou puxei papo, fiquei ali mesmo sentado, parado, aguardando não sei o que. Segundos, minutos, horas não sei bem ao certo quanto disso se passou - se é que passaram! Apenas me recordo que numa das minhas pescadas de tédio-sono o meu nome completo, não o do heterônimo, foi anunciado num brado horripilante! Me pus de pé num átimo sagrado e corri pra sei lá o que ou do que não sei bem pra onde. Só me lembro que atravessei um pórtico-azul-marinho-jônico e, num estalo bobo, eu estava numa sala toda sépia em seu ambiente interno. “Sente-se”, disse-me uma voz embargada, rouca e aparentemente cansada. A voz vinha por de trás duma enorme poltrona de couro – acho que era de couro -, onde eu só via sua traseira. Eh, a coisa-pessoa estava de costas para mim. Sentei ali na cadeira em frente. Entre nós apenas uma escrivaninha antiga e igualmente enorme, dessas que sempre vemos nos filmes onde os chefes, os presidentes e demais autoridades sempre têm em suas salas de respeito. Depois disso, só ouvi uns sons de rabiscos por de trás da poltrona de couro. Parecia que esse ser-coisa estava lá escrevendo ou desenhando alguma coisa importante... “Pronto!”, gritou. “Aqui está tua licença, meu jovem.”, disse-me a voz quando me entregou uma folha pálida com letras negras como a noite e carimbada com um emblema circular vermelho-sangue de autenticidade: era a minha licença poética! A coisa-homem, ou sei lá o que valha, me entregou colocando-a sobre a escrivaninha com a mão-pata esquerda, não se dando ao trabalho de se virar para me entregar. Nessa curta ação, nesse relance, pude ver ou perceber “a mão” da coisa-ser que me entregava a minha licença poética. Não era uma mão, era mais uma patinha, muito fina, aliás, tipo dessa de insetos parasitas que habitam nossas residências e assustam algumas fêmeas, manja? Naquela hora, não fiquei assustado, nada disso. Eu tava ali, enfim, com a minha licença poética em mãos! Levantei da cadeira com emoção e já fui saindo da sala-sépia de fininho... Mas, claro, fui saindo dizendo “Muito obrigado! Muito obrigado!” e ainda dei uma olhadinha para trás, sobre ombros, para ver se a coisa-homem virava para frente. Que nada! Ainda estava de costas. Só pude perceber uma fumacinha saindo feito serpente encantada à flauta por de trás da poltrona de couro velho... E foi assim que obtive a minha licença poética. Sem mais nem menos. Eu a guardo minimizada entre os hemisférios direito e esquerdo do meu cerebelo. Bem ali no meio, junto, bem juntinho dos percevejos marinados de cerveja.

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