sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O livro da capa aluminada

Voltava eu de uma cruzada. Eu tinha acabado de conquistar outra cidade, mais um grande adendo ao reino de meu querido rei, quando vi o livro da capa aluminada. Meu comboio passava por um desses pequenos povoados à beira de oásis e, enquanto nos abastecíamos de previsões e armamentos, dei de cara e fuça com uma menininha toda suja e maltrapilha carregando um grande livro prateado por debaixo dos bracinhos finos. Aquilo me despertou curiosidade: como aquele artigo foi parar naquelas mãozinhas? Separei-me dos demais e fui abordar a pequena. Essa, quando se apercebeu seguida, disparou ligeira numa corrida frenética. Parecia até tomada por alguma entidade não deste mundo. Por sorte, o lugarejo era pequeno, mesmo abarrotado de todo tipo de gente, consegui acompanhar seu nodoo vulto até uma tenda um pouco mais afastada da maioria. Caminhei até lá a passos lentos, não tinha como a menininha fugir de lá e, também, não sou guerreiro de correr feito lacaio atrás de garotinhas. Diante da tenda, pude ver um filete de luz entre os panos. Tinha alguém lá, sem dúvida, porém, eu não ouvia barulho algum de lá de dentro. Quando eu entrei, entrei de uma vez, mas sequer imaginei que poderia encontrar por lá o que acabei encontrando: o livro da capa aluminada estava lá, bem no meio da tenda, sobre um suporte de pedra negra. Convém relatar aqui, quando adentrei a tenda, essa, num piscar de olhos, se transmutou numa caverna escura e úmida. Percebi, na hora, que não estava mais no tal povoado à beira de oásis. Não me fiz de preocupado, pois, nesta vida de centurião, já vi muita coisa além da imaginação... Aquele livro era um tesouro! E eu, além de conquistador de territórios, sou um colecionador de tesouros, de relíquias. E, aquele livro da capa aluminada, como eu suspeitava, era algo bem mais do que um simples artigo de cofre. Talvez fosse algo mágico. E, aquela mudança de cenário, só reforçou em mim essa suspeita. Olhei ao redor da caverna, procurando alguma armadilha, afinal, artigos desse porte nunca estão assim à mão, fáceis demais de serem apanhados; eles sempre estão protegidos por algo ou alguém. Então, olhei bem ao redor, apalpei as paredes, cheirei todas as plantas ali que insistiam em crescer num ambiente tão escuro e úmido... Fiquei desconfiado disso, claro, mas parecia tudo nos conformes, sem artimanhas mágicas à mostra. Em seguida, me ative ao livro da capa aluminada e ao pedestal de pedra negra onde ele repousava. De onde eu estava, pude ver a capa, mas essa não exibia nada assim reconhecível, somente uma moldura em arabesco, nada estava escrito na capa. Aproximei-me mais do livro, de alguma forma, a capa prateada irradiava uma luz branca chamativa, convidativa... Não resisti, agarrei o livro com as duas mãos, mas é claro, olhando ainda para todos os lados em busca de alguma armadilha de última hora. Nada. O livro era pesado, muito pesado, aliás. Contudo, o ergui na altura dos olhos, o manuseei bem para ver se tinha alguma coisa gravada na parte de trás dele e na lombada. Nada. Somente as linhas em arabesco, nada estava escrito. Para folheá-lo, não teve jeito, tive que devolve-lo ao suporte de pedra negra, pois ele era muito pesado. E quando eu pousei a capa virada por mim sobre o suporte de pedra negra, quando eu abri o livro totalmente, senti uma força estranha puxando minhas mãos, de modo que essas ficassem grudadas sobre o livro recém aberto. Aí me bateu um certo desespero: de repente, as veias das minhas mãos começaram a ficar salientes, inchadas, como se estivessem sendo preenchidas com alguma coisa, alguma coisa não vista; as veias dos meus braços também se enchiam rapidamente. Rosnei de dor, óbvio. Aquele troço estava invadindo a minha corrente sanguínea de uma forma impressionante! E quando chegou ao meu coração, não deu outra, a dor foi tanta que ajoelhei, e ainda com as mãos grudadas no maldito livro. Eu gritava feito um animal abatido estrebuchando. Meu desespero até mesmo me assustou! Eu não queria morrer, claro, não ali e daquele jeito. Eu era, e sou, um guerreiro. Meu destino é morrer no campo de batalha e não numa armadilha mágica planejada. E quando eu gritei “Não!!!” bem alto e forte no auge da dor que tomava meu corpo inteiro, senti que a coisa que me invadia voltava para o livro. Senti um certo alívio. Porém, durou pouco. A coisa parecia mesmo estar saindo do meu corpo. Contudo, pude perceber que o livro estava sugando o meu sangue... Sob minhas mãos, ainda grudadas naquele livro desgraçado, pude ver a poça de sangue se formando e sendo absorvida pelo livro aberto de páginas em branco. E, conforme meu sangue ia sendo absorvido, umas letras, umas palavras iam se formando sobre as páginas...


AVISO I
Este é o livro forjado pelo próprio KAOS.
Quem dele quiser ler, pagará com a própria vida.
Ou quem dele recusar, pagará com a metade do seu sangue.

AVISO II
Quem dele decidir ler, morre para se tornar um deus entres os homens.
Quem dele rejeitar, viverá metade da vida que viveria naturalmente.

AVISO III
A possibilidade de escolha nunca é dada, pois somente quem não teme o desconhecido merece o poder da criação.


Aquelas palavras, visíveis graças ao meu sangue, me doeram mais do que a dor provocada ao abrir o livro. Num susto, uma força invisível me despregou do livro. Voei para trás uns sete metros além do pedestal de pedra negra. Quando dei por mim, estava no chão da tenda, sem nada reconhecível à vista. Levantei-me a custo e sai pra fora. Era madrugada. Ninguém se mostrava, somente os cães vadios em busca de alguma coisa que servisse de comida... Eu estava meio tonto, fraco e todo molhado, mas decidido em largar de vez a vida que eu levava. Eu não tinha mais tempo a perder.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A FLOR SUICIDA



À Érica, essa minha amiga assassina do romantismo



Mijada foste no elevado
Quando aberta as primeiras pétalas
Na primeira aurora da Primavera,
Flor branca maculada.

Sua sina foi sinistra
Sem sequer atrair beijos afoitos voadores
Teve seu entorno e seu íntimo
Violado pelo dejeto úrico fálico.

E, ali parada,
Sem entender nada,
Pois acabara de despertar,
De se abrir ao mundo,
Percebeu-se suja, imunda
Em meio às suas irmãs,
Ainda botões,
Todas elas bem branquinhas, limpinhas
Sem sinais de violação.

Daí não se conteve
Diante da sua desgraça:
Arrancou-se do grosso galho
E atirou-se do elevado...

Sua queda foi rápida –
Corpo encharcado de desejo.
Seu pequenino corpo se estatelou no asfalto da avenida movimentada,
Seu pequenino corpo foi despedaçado por centenas de carros apressados.

E ninguém se deu conta
Da tragédia ali à vista
E sem pompa.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

De saco cheio da rede que se esvazia

Cansei da tal felicidade dos outros.
Tudo que vejo compartilhado
É um estorvo!
Ou coisa de louco.

Cansei de ver o que não devo.
Tudo assim exposto
Dá medo!
Eu não mais aguento...

Vou me desligar de tudo isso!
Vou tentar me esquecer daquilo...
Não tô afim de mais nada.

Não vejo mais graça
Na tentativa frustrada
De se mostrar realizada nessa grande farsa.