domingo, 21 de março de 2010

Miniensaio (1)

“Quem não vai pra rua, não vê Deus”, disse, dia desses, uma vizinha cá do bairro. Ela disse isso pra uma comadre dela, pois pra mim não foi – eu estava é do lado das duas, ouvindo conversa alheia... Tenho esse hábito detestável, mas discreto e dócil, convenhamos. Tal máxima me deixou instigado, por isso a reproduzi imediatamente no meu bloquinho de notas do meu celular, assim que a ouvi. Esses aparelhinhos até que são úteis! Pois bem, anotado, ficou lá salvo durante um bom tempo, contudo, vejo (agora) a necessidade de comentá-la cá neste espaço virtual. Afinal, manter publicações interessantes é fundamental, certo? Então, considero essa modesta, aparentemente, máxima digna de desdobramento intelectual, pois, a rua, como tu, caro leitor, bem sabes, é o símbolo da perdição. Lendo o livro História social da criança abandonada, percebemos essa analogia. Basta que eu diga “menor abandonado”, “morador de rua”, “mulher da rua”, “vivi na rua, aquele traste!”, pra tu entenderes direitinho o que eu estou querendo dizer. Tais termos discriminativos ganham ressonância semântica pejorativa, graças ao substantivo feminino “rua” implícito ou explicitado nas composições acima. Reconheço que é mui delicado utilizar esses termos acadêmicos, mas é isso mesmo. Rua, nas simplificações apresentadas anteriormente, tem carga semântica negativa, depreciativa. Porém, na máxima popular aqui analisada, não é bem assim, não. “Quem não vai pra rua”, ou seja, quem não sai de casa, quem vive enfurnado, “não vê Deus”. Rua é vida e vida é Deus, nesse caso. Dá pra entender? Aqui há resquícios daquela velha doutrina franciscana de que Deus se reflete nos pobres, nos que são simples, sabes? Enfim, Deus está na rua, no meio da rua (por que não?), em meio a seus filhos, suas criações finais, e quem não dá as caras por lá, não o vê, não o olha diante de si em plena essência divina. Mas, se a rua é símbolo da perdição: o que Deus está fazendo lá?! Estará perdido ou de passagem?? Irá visitar algum amigo, afinal, Ele conhece tanta gente, né?? Entende agora, caro leitor, o porquê d’eu ficar tão tarado por essa máxima alheia? Ambígua ela não é, entretanto, acabei tornando-a, acabei corrompendo a pobre. Heresia! Maldito herege degredado que sou. Bendita seja a palavra polissêmica que criamos! Ela incide luz ou trevas sobre o nosso formoso campo de significados possíveis e impossíveis. Louvada seja a palavra, a nossa palavra!!


Referências bibliográficas:

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.

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