quinta-feira, 27 de outubro de 2022

GARRASTAZU

Imagem: mundoecologia.com.br


Lembro-me bem como se fosse hoje, coisa de agora mesmo. As pessoas estavam desaparecendo, não de forma natural, pois, pensando bem, desaparecer naturamente é a coisa mais natural que a gente, enquanto gente, ser humano vivente, faz. Mas estou divagando, estou perdendo o fio condutor da minha história. E é preciso reagarrá-lo. Donde estava? Ah, sim! Os sujeitos que sumiam. Estava eu sem destino, caminhante aí a pé pelo mundo. Passava eu por uma terra árida, seca, mais morta do que viva. Passava eu praticamente sozinho; gente como eu, nesse tempo, pouco eu via. Passava eu quase já me arrastando, meus pés e minha cuca ardiam: o sol era astro austero maior. Quando, de repente, vi na linha tremula do horizonte tremulo um elevado verde. Logo pensei que tinha endoidado. Como assim algo assim bem no meio do deserto donde estava? Solo rachado, árvores secas e, logo à frente, um montinho daqueles parecendo um imenso oásis no sertão? Eu estava delirando, óbvio! Supus isso e supus errado. Conforme eu continuava a dura e seca caminhada, eu ia vendo aquele tomo ganhando cume e corpo. Não me alembro direito quanto de tempo levei até ele, mas, a cada passo mais próximo dado a ele, mais eu via e percebia que aquela serra era real. Irreal mesmo eram as pessoas daquele lugar. Havia um lugarejo aos pés da serra; construções capengas, de morada e de comércio, eu vi erguidas por ali. Conforme eu me adentrava naquele lugar, mais eu me sentia vigiado e mal-vindo. Eu me senti inté como aqueles mocinhos-bandidos forasteiros dos filmes norte-americanos do tal velho-oeste que hoje ainda são vistos em grandes e diminutas telas. Enfim, eu me enfiava mais naquele arremedo de cidade-povoado, buscando algo de familiar, acolhedor, mas nada ali e nem ninguém se mostrou ser bom anfitrião. Era uma gente estranha. Não ti olhavam na cara e nem faziam as mesuras habituais de “bons-dias”, “boas-tardes” e “boas-noites” esperadas numa grande concentração de gente aparentemente civilizada. Metidos, logo pensei deles. Medrosos, logo vim a descobrir. Pousei numa bodega pra descansar, alimentar e hidratar o meu corpo fatigado e, logo vi, que o lugar tinha o mesmo clima desconfiatório da rua de fora. Fui atendido por um sujeito triste, nem novo nem velho, cinza, carrancudo, mas que me serviu eficientemente nacos de charque, pedaços de um pão duro desmiolado e uma moringa cheia de água fresca. Comi, bebi tudo bem na manha enquanto ficava de ouvido nas conversas, que mais pareciam grunhidos, pequenos cochichos, das pessoas que por ali também se pousavam. Nessa, vim a intuir que as pessoas de lá estavam desaparecendo misteriosamente. Ou, quando enfim reapareciam, só se via expostos partes, pedaços de seus corpos. Fiquei horrorizado. Inté me engasguei quando ouvi que inté criancinhas, meninos e meninas, estavam sumindo. Recuperado da gastura do engasgo, paguei a conta e fui saindo. Entretanto, já na rua, um tumulto se alastrava: “Levaram mais um!”, “Fulano sumiu!”. Aí, para a minha surpresa, me vi envolto, arrodeado por um mundaréu de gente. Se antes, o povoado parecia deserto, quando me acheguei nele, agora, do nada, estava abarrotado de gente gritando, esperneando, fazendo mó escarcéu pelo mais recente desaparecimento. “Algo há de ser feito!”, diziam. “Não pode continuar assim, não!”, vociferavam. “Mandem o forasteiro lá pra cima!”, repentinamente entoaram. E assim mesmo de supetão, meio contrariado meio obrigado, uma turba de gente braba me amarrou num pau de arara e me despachou como possível são salvador, ou oferenda, rumo ao cume da serra. O passeio foi sôfrego. O veículo era descoberto e, pra aumentar a minha desgraça, começara a chover. Não via o chofer na cabine, mas ele guiava a toda pelos caminhos serpenteantes do morro. Subi a serra com aquele barulho alto pra burro de motor velho nos ouvidos e uma forte chuva nos quengos. No topo, fui descarregado do carro por dois brutamontes que usavam toucas pretas na face, pra eu não ver seus rostos, deduzi. Esses, me desamarraram e partiram dali num pinote. No chão lamacento, pois chovia, tentei avaliar a minha situação: não era das melhores. Estava eu só numa região de mata e o clima não me favorecia. Tentei procurar o caminho por onde me trouxeram, mas todo o chão estava em poças, alagado. Meio zonzo, eu buscava com as vistas algum abrigo. Pra minha surpresa, vislumbrei umas construções bem mais à frente donde estava. Caminhei-me para lá, afundando as patas no lamaçal. Mais próximo das estruturas feitas por gente humana, fui percebendo que era um outro povoado ali posto. Contudo, estava um caos. Tudo revirado, meio destruído, bagunçado, parecia uma zona de guerra. Todas as casas não tinham teto. Apenas uma espécie de galpão, bem mais pro meio da vila, tinha uma cobertura. Fui até lá. Diante do grande portão de ferro do tal galpão, parei. Forcei-o um pouco, era bem pesado, mas o abri. Uma vez me pondo dentro, logo vi várias pessoas lá juntas ao fundo, olhando assustadas para o portão aberto, olhando fixamente para mim. Após fechar o grande portão atrás de mim, encarei aquelas caras veladas de medo. Percebi pequenos grupos desses bem rentes às paredes do ambiente, como se estivessem evitando a grande área vazia do vão da cobertura do galpão. E, antes mesmo que eu perguntasse qualquer coisa pra qualquer um ali, uma voz mais ao fundo, meio abafada, lançou-me uma pergunta: “Eles ainda estão lá fora?”. “Eles? Eles quem?”, respondi perguntando. “A chuva está passando!”, gritou outro sujeito lá do meio e, num segundo, ou menos, todos ali se agitaram, tremiam de todo e ficaram olhando pra todos os cantos do teto do galpão. De fato, a chuva passara; só os gemidos das pessoas ali reunidas se ouviam, mas esses logo se silenciaram quando um grande ruído de fora se avolumou. Um estrondo. Parecia um barulho de avião que quando passa, vai crescendo, crescendo, mais alto, mais alto. Barulho de asas batendo; abas abanando abanador. Foi de súbito, o teto todo veio abaixo; horror, desespero, umas aves enormes, sinistras, de porte de um homem adulto adentraram no abrigo! Eram muitas!! Cada uma pegava, com as suas garras, um ser vivente ali que tentava em vão fugir. Vi, em pleno ar, elas desmembrarem suas vítimas. As bestas tinham bicos curvados, uns amarelos, outros vermelhos, a maioria eram pretos. Donde estava, eu via a todos serem brutalmente dilacerados. A carnificina era geral. Quando me dei conta, só eu estava ali de pé diante do banquete macabro. Foi quando me encostei batendo no portão que as aves ali me aperceberam. Essas suspenderam a violação dos corpos-refeição e fixaram seus olhinhos negros brilhantes em mim. Gelei. Suei a frio. Porém, elas não se avançaram contra mim. Nada. Ficaram ali quietinhas, com fibras de carne humana e sangue pendendo dos bicos sujos. De repente, outro estrondo. Esse muito maior do que o anterior: era um grande gralhão. Aí eu o vi: pousando bem lentamente no meio das outras aves que lhe faziam roda, eu vi a criatura toda de penagem branca descer do céu negro sem estrelas e me encarar demoniacamente. Petrifiquei. Não esbocei sequer reação. Via a Morte bem diante dos meus olhos e já dava como certa a alma encaminhada. Eu arfava. Eu sentia o meu coração bater cá dentro do peito e reverberar no céu da minha boca. Eu me tremia todo. Era o meu fim, pensei. A criatura branca vinha a mim devagar, garra ante garra. Bem próxima de mim uns palmos, senti sua estatura: tinha mais de dois metros!! E continuava me encarando, assim meio de lado, desconfiando. Foi quando ela foi se achegando com aquele bico torto bem próximo à minha fuça que eu senti o tempo se suspender, parar de vez. Não me alembro de nada. Apagão. Branco. Em preto e branco eu via os meus dois braços finos, eu via as minhas mãos ossudas esgoelando a criatura!! E ela se debatia toda; desesperada, abanava aquelas asas imensas, aquela asa-delta alva e sacudia as patas freneticamente. Suas garras afiadas rasgavam o meu peito, a minha barriga, as minhas coxas e pernas, mas eu, sei lá como, não soltava não o seu pescoço. Pus toda a minha força, pus toda a minha vida em minhas mãos!! Não senti o estralo, quando as cores voltaram nas minhas vistas, foi que eu soltei o bicho e o vi se estatelar no chão; fez inté um barulhão. A criatura alada estava morta, nunca mais voaria e ali, vendo-a estendida, meio murcha, encolhida, senti uma coisa cá dentro de mim difícil de exteriorizar; me sentia aliviado, claro, cansado, exausto, mas também meio culpado, pecador, como se eu tivesse maculado algo sagrado, como se eu tivesse matado um inocente. Ainda de pé, meio encurvado, olhei pra frente e vi as demais aves do bando inicial ainda me olhando. Paradas estavam, paradas ficaram enquanto eu e seu ou sua provável líder nos embatíamos. Eu estava acabado, ensanguentado, arfante e ainda sentindo um medo da porra, mas, lá de dentro de mim, veio uma vontade urgente de gritar, rosnar, emitir qualquer rugido ou coisa assim do tipo. Pois gritei, rosnei, soltei o meu grito de vitória, ou pavor, sei lá, ainda não sei me explicar e, após esse meu ato primal, o bando de aves gigantes se avuaram dali. Olhando pra cima, eu as vi voando em círculos ali dentro do galpão e se arremeterem, uma a uma, aos céus novamente. O som que emitiam ficava cada vez mais distante, mais longe. Alívio. Ainda olhando para os céus, vi que o dia estava clareando; amanhecendo estava, enfim. Senti o corpo pesado, desmaiei. Capotei sobre o corpo inerte do monstro que acabara de matar. Quando dei por mim, me apercebi numa caverna, havia uns sons de gente conversando e um odor muito forte de alguma coisa que eu não fazia a menor ideia do que era. Sentia um calor gentil de uma fogueira próxima. Escuridão. Despertei novamente, vi meus cuidadores: uma gente simpática de trajes sumários lhes tapando uma ou outra parte mais frágil do corpo. Esses me levantaram e me saudaram. E foi aí que me apercebi meio que vestido com os restos mortais da criatura gigantesca que eu assassinara. Esse povo aqui me chama de Asa Branca. E é essa a minha história.



Observação

Conto confeccionado, porém, NÃO selecionado para o XV Concurso Nacional de Contos de Araraquara - "Prêmio Ignácio de Loyola Brandão".


terça-feira, 25 de outubro de 2022

A VERDADEIRA FACE

Foto de Eugenijus Kavaliauskas pega no Uol.com.br


Sempre esteve ali

Pra todo bom observador ver

Mas sempre a ignoravam

“Pequenina demais”,

“Insignificante”

Diziam todos aí em coro

Porém – agora – jogo virou

Graças a um obstinado

E um bom microscópio

A besta é enfim vista por todos

E até o tamanduá-bandeira foge afoito