Começo de namoro é sempre uma
maravilha. O casal está sempre sorridente, alegre e com aquela cara abobalhada
de bêbado apaixonado. Coisa linda de ver. Os pombinhos estão sempre juntos, bem
grudados, tipo, um não vive sem o outro e, se separam, nem que seja por uns
segundinhos só, o dengo mútuo enrola, pasta sem pressa até que alguém, com
raiva ou inveja de tamanha doçura diabética, os separe de vez.
Nesse clima primaveril, nada
mais natural para um recém-casal do que combinarem uma viagem juntos, certo?
Pois bem, eu e minha namorada tínhamos combinado um rolezinho. Nada assim de
tão longe ou muito perto. Não queríamos descer pro mar, mas queríamos vê-lo,
então, nós dois, como típicos paulistanos atípicos, decidimos “dar um pulo logo
ali” em Paranapiacaba. Para quem não sabe, informo: Paranapiacaba é um distrito
do município de Santo André, que fica a 50 km de São Paulo. Contudo, para nós,
para minha pequena e eu, Paranapiacaba é uma vila. E toda vila tem alguma sina,
alguma coisa sinistra, mística e/ou fantasmagórica. Paranapiacaba tem tudo isso.
Meu love e eu queríamos ir lá para
ver o que ainda restava dos casebres de madeira ao estilo inglês. Sem dúvidas,
se você for para lá, certamente se sentirá mais em terras do chá das cinco do
que do cafezinho com leite. Paranapiacaba é um charme. Coisa linda para inglês
ver e se deliciar, se enternecer.
Entretanto, essa vila também
nos faz tremer. Lá, a névoa se faz presente. O clima é mais pro frio do que pro
quente e, se não chove, parece que vai chover. O friozinho lá é convidativo, já
a névoa instiga os nossos mais primitivos sentidos: dá medo sim! Só indo lá para
entender.
Enfim, eu e minha guria
estávamos na vibe de colar por lá.
Curtir um friozinho a dois é sempre bom. Encontramo-nos na estação da Luz e
partimos, devidamente agasalhados e coladinhos. No meio do caminho, senti um
certo desconforto na região da barriga. A princípio, ignorei-o, pois deduzi que
era uma dor comum quando se exagera nos comes e bebes desabituais – realmente, no
dia anterior, eu tinha sim me esbaldado pra valer na janta da minha avó.
Não comentei nada com a minha
namorada sobre isso por achar que era algo desnecessário, coisa banal. Afinal,
eu acreditava que, no decorrer da viagem, eu iria melhorar. Só que não. A cada
estação que passávamos, a dor preenchia e se intensificava mais na minha
barriga.
Desembarcamos na última
estação da linha. Rio Grande da Serra era o seu nome. De lá, pegamos um ônibus
que nos levou direto para a vila de Paranapiacaba. Chovia fino ainda. A viagem
foi rápida. E a dor se demorava dentro de mim. Descemos num terreno elevado
próximo à vila e, de lá do alto, vislumbramos a cena de baixo: casebres
engolidos pela névoa. Era lindo. As vielas eram de paralelepípedo. Caminhamos
com cuidado sobre eles, pois o chão estava molhado. Eu caminhei com mais
cuidado ainda, meio que sem jeito até, pois a dor me consumia, mesmo ela não
sendo nos meus pés.
Fomos descendo o morro até
chegar numa ponte montada sobre os trilhos do trem. Essa ponte era longa,
comprida, ao fundo não se via seu fim. Só havia névoa. O lugar todo estava
envolto em serração. Nós a cruzamos excitadíssimos. Parecia que estávamos num
filme de terror! A cada passo, que dávamos sobre a ponte, ela rangia um rangido
agudo, abafado de velhos tempos; não dava para ver o que tinha do outro lado
dela, a neblina ficava cada vez mais e mais densa à medida que íamos penetrando
na antiga vila.
Após a ponte, nos vimos numa espécie de
“ponto de encontro”, com lojinhas de comes e bebes bem quentes. Decidimos parar
por lá a fim de nos prepararmos bem para o dia de intensa caminhada, que
planejávamos ter.
E foi aí que eu não aguentei
mais a minha dor.
Em vez de café, pedi um chá.
Aí a minha fiel companheira começou a desconfiar de que eu não estava bem - pedir
chá não é um bom sinal.
Bebi a infusão e nada. Não
melhorei. Fui ao banheiro e, também, nada, a dor não saia de mim. Passado
alguns minutos, comecei a suar frio, tive calafrios. Eu estava ficando pálido.
Foi aí que fui convencido a procurar um posto de saúde. Paranapiacaba não tem
hospital.
Pedimos informações por ali no
local que estávamos e fomos andando. Chovia grosso já. Minha namorada foi me
amparando com um braço, com o outro ela empunhava um guarda-chuva. Eu caminhava
com dificuldade junto dela. Eu caminhava todo curvado, a dor se tornara
insuportável. Durante o trajeto até o posto, vomitei. Lembro-me que fiquei
envergonhado ao fazer isso a seu lado. Era a primeira vez que eu vomitava em
sua presença. Isso não era lá uma coisa linda de se ver, não.
Fomos andando. Ela me
amparando com um braço, eu ocasionalmente vomitando pelas sarjetas e a neblina
nos envolvendo a cada passo.
Já no posto, fui atendido rapidamente. Só
havia eu de doente por lá. O médico de plantão me avaliou e me receitou
remédios. Fiquei de observação por um bom tempo. Fiquei muitas horas por lá. E,
de hora em hora, o médico vinha me ver, me reavaliar, para depois me receitar
mais e mais remédios, todos esses para a dor abdominal.
Minha namorada estava sempre
do meu lado, velando-me, cuidando, esperando que eu melhorasse. Lembro-me que a
vi preocupada quando comecei a tremer convulsivamente sobre a maca que me
colocaram.
Custei a melhorar. Mesmo me picando, dando
soro e outras drogas via veia e via oral, a dor se mostrou persistente, teimosa
pra valer. Eu ficava lá deitado, sendo medicado, e ficava vendo a neblina de
fora por umas janelas próximas ao teto da sala de medicação. A neblina também
se persistia, não arredava pé do lugar. E eu também via, do meu lado, a minha
namorada, cada vez mais cansada, exausta de ficar do meu lado me olhando. Ela
também olhava para as janelas, de vez enquanto, e ela também via a neblina se
espalhando, tomando conta do ambiente, tomando conta das casas, das ruas e das
pessoas que por lá se aventuravam.
Passou muitas horas até eu
enfim melhorar o suficiente para ganhar alta. Ganhei-a. A dor interna
diminuíra, eu conseguia, enfim, andar ereto, mas, mesmo assim, ainda sentia uma
dorzinha do lado direito da barriga.
Saímos de lá já era quase
noite, fim de tarde. Não tínhamos comido nada o dia inteiro. Eu e ela estávamos
cansados. Não sei dizer se mais cansada estava ela ou eu. Estávamos acabados.
Tanto que nem comemos por lá. Desejávamos ir logo para casa.
Voltamos pelo caminho vindo. O
clima apaziguara, mas a neblina, nem sinal de se dissipar. Ela estava firme. Ela
cobria ainda mais por inteiro a ponte por nós atravessada antes. Deu medo. Na
minha cabeça, pensei que não ia conseguir seguir em frente, mas segui, minha
namorada estava comigo. Pegamos o ônibus de volta à estação. Pegamos o trem. De
volta à nossa área, à nossa cidade, nos despedimos. Cada um morava num canto. Foi
uma despedida triste, mas acalentadora, eu me desculpava por ter estragado o
nosso dia e ela me dizia, com a expressão mais calma e terna possível: “Não se
preocupe. Você vai melhorar. Hoje, não deu, mas outro dia a gente volta. Tá
bom?”.
Chegando em casa, contei o
ocorrido a meus pais. Eles ficaram preocupados, lógico, até brigaram comigo por
eu não ter ligado para eles e tal. Foi todo aquele drama habitual.
No dia seguinte, meu pai me
levou ao hospital. A dor voltara forte, visceral. Lá, não tiveram dúvida, era
apendicite. Fui internado rápido e, lá, sozinho no leito, deitado sobre outra
maca, aguardando ser levado para a cirurgia, só fiquei pensando na névoa que tinha
me abandonado.