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Eu vim ao mundo por uma mão. Essa, lembro-me bem, era pequena e suada; mãos de criança me apertavam ávidas em me ver desperto. Espreguicei-me de um sono profundo e finalmente vi, num brilho etéreo, o rosto das mãos que me abrigavam com cuidado. Era um rosto esquisito, redondo, cheio de pontinhos marrons no meio; dois faróis verdes acima e uma tira metálica logo abaixo. O rosto sorria para mim. Era o rosto de Heloisa.
Heloisa era uma menina muito
alegre e agitada. Percebi isso enquanto ela me carregava de um lado para outro
no ambiente pequeno em que estávamos. Ela não parava quieta! Mesmo eu preso em
um longo fio, ela me levava para os quatro cantos daquele espaço. De repente,
ela parou e, num só gesto, arrancou de mim aquele fio comprido e mergulhou-se
num troço fofo acolchoado. Deitada, Heloisa me encarava. Fazia uma cara séria
de compenetrada. Algo importante estava rodando ali, dentro de mim. Nesse
ínterim, pude perceber melhor o rosto da louca que me segurava. Ao redor do seu
rosto redondo estranho havia uma espécie de moldura. Vários fios de cobre bem
finos pareciam germinar do topo do rosto até caírem bem depois daquela placa de
metal na horizontal. Essa, percebi, nem sempre se via ali, no rosto de Heloisa.
A menina conseguia escondê-la, de alguma forma...
De repente, novamente, seu
rosto se iluminou e um sorriso-metálico se mostrou! A menina Heloisa estava
feliz com alguma coisa que via dentro de mim. Também fiquei feliz, porque,
vendo-a daquele jeito, algo em mim se dava por satisfeito. Era curioso esse
sentimento. Eu mesmo me sentia não fazendo nada, só estava ali em suas mãos
suadas, tentando entender o que estava acontecendo, enquanto ela parecia de
tudo entender e se surpreender com que via e ouvia saindo de dentro de mim.
Aos poucos fui entendendo
esse mundo. Eu era um meio de comunicação entre a Heloisa e os outros seres de
rosto redondo estranho que ela conhecia. Eu era o elo deles com ela. Confesso
que achava essa função natural e nada chata, pois, a menina Heloisa, tinha
várias amigas divertidas e uns amigos palhaços também. Era bonito vê-la
interagindo com eles com eu ali no meio.
Essas amigas e esses amigos
tinham algo parecido comigo junto deles. Com esses, eu só trocava informações
técnicas e/ou compartilhadas numa nuvem elétrica. Era algo trivial de que eu,
particularmente, não gostava muito. Mas era necessário, eu sabia disso, e a
Heloisa também. Ela sempre me limpava toda vez que ficava preocupada em me ver
infectado com vírus. Na vez em que eu peguei um desses, vi Heloisa de um jeito
apavorante: ela ficara pálida, toda branca num ato só, seus dois faróis,
outrora verdes, ficaram vermelhos e vertiam um líquido transparente e quente —
três gotas caíram em mim e aí eu pude senti-los.
Nesse estado eu a via e
quanto a mim, parecia que eu não era dono de mim. Eu fazia o que não era esperado
e vazava coisas piores ainda! A menina Heloisa me levou às pressas em um lugar
diminuto. Lá, fui apagado, o primeiro apagão, se meu corpo foi desmembrado, eu
não me lembro, mas desconfio que tenha sido. Poucas lembranças tenho daquele
dia e pouca memória me sobrou depois. Mas quando eu vi o sorriso-metálico de
Heloisa, eu a reconheci.
Era bom estar ali com ela.
Sempre estávamos juntos. Ao acordar, no café, na escola, no dentista e até na
piscina do sítio da tia Elvira! Toda noite, antes de dormir, Heloisa via em mim
e sorria antes de me cobrir.
A minha vida era dela. E eu
a adorava. Heloisa me agradava, cuidava bem de mim, me alimentava. Aprendi
muito com a Heloisa. Aprendi o que é selfie[1], meme[2]
e textão[3]. Aprendi o que é falar do
coração e, no tom de voz da mãe, a legítima preocupação. Com a Heloisa ouvi
muita música boa — só as melhores do mundo! Ouvi filmes bons e ruins. Séries
também, uma infinidade delas. A vida com a Heloisa era uma diversão só!
Aos poucos eu via o rosto
redondo estranho de Heloisa se modificando. Um dia aparecia uma espinha ali e outra
acolá. Às vezes, eu via também uns machucados. Lembro-me dela do queixo ter
ralado. Eu via a menina Heloisa deixando de ser menina. Eu a via crescer e ter
outros hábitos. Era raro vê-la sorrir. Diante de mim, ela mudara muito. Eu a
via reclamar de tudo. Até de mim! Teve um dia em que ela me atirou ao chão.
Segundo apagão. E quando enfim fui reanimado, o que vi não era mais a Heloisa,
era um rosto fragmentado de uma coisa ruiva desbocada! Entrei em curto. Fiquei
apavorado! Vasculhei na minha memória algo que pudesse me ajudar, mas nem lá a
Heloisa estava, nem a menina, tampouco a com espinha.
Triste fiquei por um bom
tempo. A criatura ruiva só me usava para despertá-la, todo dia bem cedo de
manhã. Virei uma espécie de despertador apenas. Não via nem ouvia mais ninguém
direito. Tudo era embaçado, sem foco meio mudo. O silêncio era a minha única
companhia, nem o único som que eu fazia, eu ouvia direito. Fiquei muito tempo
assim. A criatura ruiva só me alimentava o suficiente para eu despertá-la.
Porém, teve um dia em que ela se esqueceu de me alimentar e, aos poucos, fui
apagando de vez. Esse foi o terceiro apagão.
Nunca soube o que
acontecera comigo depois disso. Só me lembro de acordar de um jeito estranho e
de perceber em mim algo que não era bem meu. Senti uma mão macia me pegando e
me pondo no colo de uma criatura fofa de aspecto engraçado. Diante de mim havia
dois rostos redondos estranhos. Um maior e outro bem menor. O maior sorria um
sorriso branco familiar. O menor me olhava desconfiado. Nos dois havia
pontinhos marrons bem no meio deles e enquanto o maior era emoldurado com uma longa
cabeleira vermelha, o menor tinha um comprimento menor da mesma cor. De
repente, um dedo suado me acariciou, um dedinho babado o imitou. Aí eu vi a
minha menina Heloisa convertida em duas!!
[1] Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo com
origem no termo self-portrait, que
significa autorretrato, e é uma foto tirada e compartilhada na
internet (www.significados.com.br).
[2] Meme é um termo grego que significa imitação. O termo é bastante conhecido e
utilizado no "mundo da internet", referindo-se
ao fenômeno de "viralização" de uma informação, ou seja,
qualquer vídeo, imagem, frase, ideia, música e etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente,
alcançando muita popularidade (www.significados.com.br).
[3] Texto considerado inconveniente devido à sua extensão
e interpretado como pedantismo nas redes sociais (www.dicionarioinformal.com.br).
Obs.: conto NÃO selecionado para o IV Concurso Bunkyo de Contos dA Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social.
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