Dizem que não existe, mas é
mentira. Existe sim! E eu mesmo já a vi. Ela é real. A caixinha de Barboza é
uma realidade deste mundo. Faz muitos anos, é verdade, mas eu me lembro dela
como se fosse coisa de agora, coisa fresca e bem madura de comer. Eu era um
reles alferes do mítico Valentina Quebra Ossos quando ele partiu numa caça
desenfreada ao tesouro do pirata Sorriso de Hiena. Nós, piratas, sempre nos
reuníamos numas pocilgas de qualquer reino pra encher o cu de rum e trocar
informações entre a gente. Numa dessas orgias de sempre, o tal tesouro foi
assunto recorrente. Parecia que um ex-marujo do tal Sorriso cantou de papagaio antes
de ter seus membros arrancados pela guarda real e, claro, caindo a informação
lá, ela caia entre a gente também. Nosso capitão, o Barba Púrpura, quando ficou
sabendo disso, ficou todo empolgado. Fazia tempo que ele não caia no mar numa
busca desse tipo. Ele já estava entediado de saquear navios mercantes. Nosso
capitão sempre teve gosto pela aventura. Mesmo que nela, metade de tripulação,
ou mais, se perdia, não sobrevivia até o fim da empreitada... Pois bem, Ele
levantou mais informações sobre o tal tesouro e, com tudo quase certo, montou
uma nova tripulação. Eu estava no meio desses novatos. Eu já conhecia bem o
histórico do capitão Barba Púrpura, pois sempre andava nesse meio de
desajustados, nunca conheci meu pai e nem a minha mãe. Naquela época, eu me
sentia mais velho, mais preparado e disposto a encarar os riscos. Eu não tinha
nada a perder. E o capitão parecia ser gente boa. Me apresentei a ele e ele me
aceitou de cara. “Finalmente!”, disse-me ele. Lembro disso muito bem. Manhã
seguinte, partimos. O Valentina Quebra Ossos era um navio monstruoso! Nele
havia dezenas de compartimentos e a madeira utilizada na sua construção,
diziam, não ser madeira típica deste mundo mortal. Não sei dizer se ele foi
pintado, mas todo ele era colorido na cor púrpura, tom idêntico à barba do
capitão, daí a inspiração, achei. Suas velas eram negras como a noite. E elas
refletiam as estrelas do céu - até mesmo durante o dia! Sem dúvidas, um navio
de dar medo. O nome Valentina Quebra Ossos vinha da ex-esposa do capitão. Numa
dessas poucas noites de calmaria, ele nos contou que a tal Valentina foi o
grande amor de sua vida. Ela era uma mulher robusta e encrenqueira. Encarava
uma boa briga numa boa. Batia e pra matar nuns dez caras facilmente. O fim
dela, o capitão não nos contou, mas, entre a tripulação, se falava que ela era
o próprio navio – ela tinha se transformado nele. Enfim, navegar era uma
experiência fantástica! Uns novatos sentiram enjoos, mas eu não! Eu me sentia,
enfim, no meu habitat natural. Monstruosidades quase todas as noites e
tempestades horríveis durante o dia não me intimidaram. O capitão Barba Púrpura
nos fazia dar o máximo e o melhor da gente. Muitos morreram, mas os que sobreviviam
se davam cada vez mais e mais. Parecia até que estávamos enfeitiçados por um
feitiço encorajador... Fazia alguns meses que estávamos no mar aberto. Já
tínhamos passado por diversos apuros e glórias. Não comento aqui sobre eles
para não estender demais o meu relato. Outro dia, quem sabe, te dou os
detalhes. O foco aqui é a caixinha de Barboza. Pois bem, nosso capitão tinha um
mapa. Este foi feito por ele mesmo, todo ele era baseado e rabiscado nas
informações levantadas pelo próprio capitão. No mapa havia um “x”, claro. Esta
marca traçada pelo nosso capitão era onde ele estimava encontrar o tal tesouro
do capitão Sorriso de Hiena. Seu “x” estava sobre a água no mapa, mas, quando o
Valentina Quebra Ossos se aproximou do ponto marcado, havia uma ilha. “Terra à
vista, homens!!!”, gritou nosso querido capitão. Era madrugada quando ele deu o
aviso. Alguns companheiros roncavam e logo se puseram de pé ao grito dele.
Talvez ele estivesse apreensivo, acho até que nem dormia direito, tamanha a
ansiedade... Assim, não perdemos tempo, desembarcamos os botes e fomos direto à
tal ilha. Esta não constava em nenhum mapa por mim consultado posteriormente,
durante o desembarque dos botes. Conforme nos aproximávamos da ilha, percebemos
que ela não era uma ilha comum: a areia da praia lembrava ferrugem, sua
consistência era mais dura, parecia até cascalho; a vegetação era igualmente
estranha, nunca tinha visto plantas e árvores daqueles tipos, elas eram verdes,
tinham cheiro de planta e tal, mas, ainda assim, eu notara algo de não vegetal
nelas todas... O capitão e o restante da tripulação pareciam surpresos também,
porém bem mais concentrados no objetivo do que no meio-ambiente. “É por aqui,
cambada. É por aqui! Sigam-me.”, dizia o capitão com suas anotações à mão.
Adentramos aquela vegetação estranha e fomos abrindo caminho. Eu olhava para os
lados e atrás de mim em busca de algum animal local e nada, sequer ruídos eu
ouvia, somente o vento mesmo entre as árvores. Pensei até em comentar sobre
isso aos demais, mas eles pareciam hipnotizados com a possibilidade de, enfim,
encontrar a tal da caixinha de Barboza. De repente, avistamos um objeto
estranho ao longe: uma espécie de totem, não cilíndrico, mas mais parecido com
uma prancha enorme de madeira, porém, não era de madeira, tampouco de aço, era
de um material negro não brilhante... Quando chegamos mais perto, percebemos
que, no tal objeto, havia uma espécie de porta na sua base. “Bora, homens! É só
entrarmos.”, disse o nosso corajoso capitão. Antes d’eu entrar, dei uma
apalpada nesse totem escuro, que não tinha nada desenhado ou escrito, ele era
todo liso, de um material desconhecido que não refletia nada, lembrava um
espelho gigantesco que só refletia a cor preta e mais nada. Passei pela entrada
e visualizei um caminho de terra e rochoso descendo em espiral. Meus
companheiros, bem à frente, queimavam suas tochas e seguiam o capitão. Conforme
descíamos, o lugar ficava cada vez mais e mais quente. Miasmas alaranjados
tomavam o lugar, mas conseguíamos ainda respirar com pouca dificuldade. Após
passarmos por um corredor mais estreito, nos deparamos numa grande câmara, no
teto percebemos umas coisas redondas lá fixadas... “Silêncio.”, sussurrou o
nosso capitão, quase não podendo ser ouvido. Estávamos em fila indiana, dando
passinhos lentos e desapressados quando um dos nossos tropeçou e caiu, fazendo
um barulho infernal com a tralha que ele levava... Nossas almas gelaram na
hora. E todos olharam para cima e viram milhares de olhinhos vermelhos e dentes
afiados reluzentes caindo sobre a gente... “Corram!! Corram por suas vidas,
seus desgraçados!!”, gritou o nosso apavorado e preocupado capitão. Corremos
nos atropelando e tentando nos defender daquelas criaturas peludas e famintas
pelo nosso sangue. “Por aqui!! Rápido!!”, gritou o capitão enquanto cortava
duas, três daquelas coisas e apontava um caminho à sua frente. Acho que eu tive
sorte, pois poucos sobreviveram ao massacre. Aquelas coisas não nos seguiram.
Elas pareciam limitadas àquela câmara. Muito estranho isso, achei... Enfim,
continuamos seguindo o capitão Barba Púrpura. Era ele e mais treze, incluindo
eu nesses treze, então quatorze homens ainda vivos dos quase sessenta que na
ilha desembarcaram. Todos pareciam cansados, assustados, mas determinados em
continuar em frente. “A caixinha da Barboza está próxima.”, dizia o nosso
querido e motivador capitão. Continuamos então, sempre seguindo em frente e
descendo, cada vez mais e mais fundo. Adentramos outra câmara, bem maior que a
anterior e, no altar que ali avistamos, bem lá no alto, vislumbramos um
pequenino cubo flutuante irradiando uma luz branca intermitente: era a caixinha
de Barboza!!! “Ali, homens!!! Muito cuidado agora.”, disse o capitão. Apagamos
nossas tochas e fomos caminhando em direção ao grande altar: a caixinha de
Barboza iluminava todo o ambiente. De repente, notamos que nossas sombras
estavam esticadas demais sobre o chão e as paredes de pedra da câmara, elas
pareciam vivas e choque: nossas sombras emergiram do chão em forma de animais
peludos muito parecidos com a gente! E esses empunhavam as mesmas armas que
carregávamos conosco!! Nossas sombras nos atacaram. Barulho de lâminas, socos e
chutes ecoaram naquela gruta. Grunhidos e gritos também. Eu estava encurralado
pela minha própria sombra quando o capitão me salvou, cravando sua espada no
pescoço da minha sombra. “Rápido, rapaz! A caixinha!”, disse-me ele apontando
para o alto do altar. Corri o mais rápido qu’eu pude até lá. A caixinha cabia
na palma da minha mão. Eu a agarrei rapidamente, não me atentando muito àquela
luz branca quase cegante que ela irradiava. E quando eu olhei para trás, para
mostrar ao capitão e aos demais que tínhamos, enfim, conseguido, vi a cena
apavorante: todos tinham sido mortos, as sombras tinham decapitado a todos, o
capitão era o único sobrevivente de joelhos e cercado pelas sombras. Lá do alto
do altar, e com a caixinha de Barboza em mãos, pude ouvir a voz monstruosa da
sombra do capitão: “Ora, ora... Enfim, deu as caras, hein, Barba Púrpura!!
Pensávamos que tinha se acovardado da gente. Você demorou demais pra honrar o
combinado. Agora você pagará o que nos deve.” A sombra sinistra do capitão
Barba Púrpura erguia sua lâmina para enterrá-la de vez no crânio do capitão,
quando este sorriu e apontou para mim. Todos ali me encararam. “Abra a
caixinha, rapaz!!!”, gritou meu capitão. As sombras peludas correram em minha
direção. “Eu não sei como, senhor!!”, gritei eu. As sombras aceleram o passo
com olhos de sangue... “Basta se lembrar de uma lembrança boa que você já
teve.”, gritou meu capitão caindo de bruços sobre o chão. “Uma lembrança
boa??”, pensei eu alto. E quando as quatorze sombras estavam apontando suas
lâminas sobre mim, e eu já no chão apavorado, quase chorando, eu me lembrei,
como se fosse um relâmpago de imagens: eu me lembrei que mesmo órfão, não
conhecendo o meu pai e nem a minha mãe, eu tive muitas pessoas que cuidaram de
mim até ali. Eu me lembrei da tia gorda que sempre me dava de comer, eu me
lembrei do sujeito manco que me ensinou a pescar, eu me lembrei dos colegas de
rua que, apesar das dificuldades do dia a dia, sempre dividiam comigo o pouco
dos restos de comida que eles arranjavam, eu me lembrei de tantos outros que me
ajudaram a sobreviver até ali e, claro, lembrei do capitão que tinha salvado a
minha vida... Nisso, uma força impressionante, emanada de dentro da caixinha
recém aberta, sugou todas as sombras assassinas ao meu redor. O lugar começou a
desmoronar. E eu fui tomado por um vórtice dourado que ia de encontro ao teto
da caverna! Antes de desaparecer além, pude ainda ver o corpo do capitão Barba
Púrpura estirado no chão... Num piscar de olhos, me vi nos céus sobre a ilha.
Lá do alto, pude ver o Valentina Quebra Ossos sendo atacado e envolvido por uma
criatura gigantesca cheia de tentáculos prateados... Eu pairava sobre a ilha e,
de repente, ela começou a ser engolida por um redemoinho assustador de enorme!
A ilha desaparecia e desaparecia rapidamente, engolida totalmente pelo
redemoinho. Este também tragava a criatura de tentáculos e os restos do
Valentina. Quando tudo, enfim, ficou calmo, eu despenquei de lá de cima. Fiquei
lá boiando sobre os restos do antigo navio. Não sei bem por quanto tempo fiquei
lá à deriva, eu não sentia mais o poder do tempo, eu não sentia fome ou sede,
tampouco frio ou calor, eu não sentia mais nada, nem mesmo a caixinha de
Barboza eu sentia mais em minhas mãos... Lembro vagamente de outro navio pirata
me resgatando e d’eu contando essa história a eles. Lembro que pedi a eles para
me deixarem na próxima parada. E estou aqui desde então. Trabalhei, prosperei e
constitui família por aqui. E, se não disse antes, digo agora o porquê de tanto
interesse que tanta gente tem em ir atrás da caixinha de Barboza. Digo que não
é mais uma lenda, é a pura verdade, quem a encontra acaba se lembrando da real
felicidade. O Barboza da tal caixinha foi o primeiro cara realmente feliz deste
mundo e, pouco antes de partir para o outro mundo, ele reuniu essa pura
felicidade na tal caixinha. O capitão do Sorriso de Hiena foi um de seus
subordinados. E o meu capitão da Barba Púrpura também o foi. Descobri isso
tempos depois. Curioso, não?
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