quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

POSSUÍDOS

Foto: tijucarj.wordpress.com

Criança não presta. Sei disso, pois as vejo por aqui todo dia na rua. Eu as vejo sempre correr, gritar e zombarem de si e dos outros todo dia. É de manhã ou à tarde, elas sempre aprontam. Causam quando vão para a escola, quando saem dela e até quando fogem dela! Principalmente quando fogem. Cabular é prática comum por aqui. Da rua, em qualquer canto ou quebrada por onde passo ou pouso, eu as vejo vagabundear por aí. Talvez o colégio não seja um bom lugar. Vai saber. Nunca entrei num. Nem sei como é. Enfim, eu vejo esses garotos e essas garotas por aí a esmo e fico preocupado, desconfiado. Afinal, eles não prestam. Estão sempre brigando entre si e com outros ao seu redor. Roubam descaradamente e são tão violentos que dá até medo. Um exemplo: aqui pelas ruas do bairro, há uma doida. É doida porque, à noite, pelas ruas do bairro, ela vai andando sozinha e gritando a todo o momento. Ela é meio gorda, carrancuda e balança os braços roliços de uma forma animada. Ela anda meio assim dançando, sambando, sapateando. E grita. Grita como se entoasse um cântico, uma reza ou um alarme. É indecifrável. Só ela sabe o significado daquilo, se é que tem raiz em alguma língua conhecida. Pois bem, essa tipa vira e mexe surge pelas ruas daqui do bairro. E as crianças mexem com ela. Sempre. Às vezes é só encheção de saco, um comentário idiota, uma zombaria besta e mais nada. Mas têm vezes que essas pestes pegam pesado. Cutucam ela, empurram ela, tentam derrubá-la, mas ela, a doida, pouco faz pra se defender ou revidar. Só continua gritando, gritando aqueles sons estranhos incompreensíveis. Quando a gorda cai, as pestes correm pelas ruas desertas do bairro numa algazarra de gargalhadas. Polícia alguma passa, claro. Esses, acho, nunca vi por aqui à noite. A doida fica pouco lá no chão. Ela se ajeita, se levanta e continua seu caminho louco. Deve ter casa. Não sei. O que sei é isso: só o que vejo. E eu vi! Essa mulher não era uma mulher comum. Noutra noite, estava eu quieto numa praça zoada do bairro, numa dessas que já fora parque e, agora, mais parece um terreno baldio, sabe. Estava eu lá num canto oculto, tentando me aquecer pra dormir, quando eu ouvi o grito da doida. Ela entrara na praça e estava como sempre do seu jeito: cambaleante, bêbada e estridente. Estava só, como sempre. Porém, conforme a vi se aproximar mais de mim, também vi um grupinho de moleques atrás dela, cada vez mais próximo dela. Eles a cercaram logo. Ficaram lá a seu redor, gritando junto com ela de uma forma zombeteira, intimidadora. Eles riam, gargalhavam na cara dela. Cuspiram nela e a xingaram. Dois empurraram ela. A gorda tombou. No chão, ainda cuspiram mais nela e a chutaram. Forte. Brutal. Todo mundo junto. Eu ouvi bem barulho oco de couro sendo surrado e estalos de ossos sendo quebrados. A doida não mais gritava, nem emitia qualquer som ou respirava. Os moleques continuaram ali, ao seu redor, de olhos fixos naquela massa gorda, ensanguentada e muda. Foi quando viraram as costas para ela que eles não viram. Eles não viram a massa crescer rapidamente, que nem uma massa de bolo no forno e envolver a todos numa monstruosa bocada cheia de dentes encardidos!! Enquanto aquela coisa grotesca e feia os comia, soltava saliva e impropérios: “SUJOS! VIS! NEM PRA ENCHER MEU BUCHO SERVEM!”. E logo vomitou uma crosta fétida de ossos e carne podre num esguicho tipo cano quebrado de esgoto. A massa voltou à forma da mulher gorda, aprumou-se toda e seguiu trôpega, gritando, gritando aquele mesmo grito, indistinto, mais alto e mais alto... Ninguém deu falta das crianças.



Obs.: conto NÃO selecionado no Concurso Literário - Possessão da Cartola Editora.

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