sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

BECO 385

Quando eu acordei, eu não fazia a menor ideia donde estava. O sol já ia alto e os transeuntes passavam por mim afoitos, como sempre. Tentei me sentar e percebi que todo o meu corpo doía, minha cabeça então parecia que ia explodir; sentia-me meio tonto também, meio grogue. Ao me pôr de assento, notei que o enjoo melhorara um pouco; meus outros sentidos começavam a voltar. Meu mau cheiro parecia o mesmo, quero dizer, sentia-me mais suado, molhado do que de costume, mas o meu forte odor parecia normal, habitual. Minha visão meio turva começava a se desanuviar conforme eu via o meu entorno. Notei que estava numa escadaria cinza de concreto, bem próxima a uma estação de trem ou metrô – donde estava, pude ver uma fileira de catracas ao fim da escada, num buraco mal iluminado cheio de gente apressada. As pessoas passavam por mim me vendo sem me notar, como de costume. Fiquei ali sentado esperando o meu corpo se avivar de novo. Não sentia fome, só um pouco de sede. Não sei ao certo o quanto de tempo fiquei ali, mas conforme eu esperava pelo meu melhoramento, eu ficava de olho nas pessoas a minha volta. Essas pareciam como eu, quero dizer, elas tinham tudo o que eu tinha em relação ao corpo, pés, pernas, tronco, mãos, braços, pescoço, cabeça e cabelo, mas – coisa estranha – seus olhos pareciam mais fechados, como se os fechassem de propósito. Achei até que o sol estava muito forte e, realmente, ali estava um baita sol, mas, percebi, que até nas sombras elas mantinham os olhos bem fechadinhos. Fiquei encucado com isso. Também comecei a perceber que a língua que essas pessoas falavam, ao passarem por mim, era bem diferente da que eu falava e pensava. Era outra língua, sem dúvida (ou eram outras línguas, sei lá eu; uma e outra soavam um pouco diferente doutra que eu ouvia passar por mim). Fiquei um pouco preocupado com isso. Levantei-me num átimo para ver os prédios, as construções ao meu redor. Essas pareciam com as que eu sempre via pelas minhas andanças, contudo, a escrita, os caracteres nas fachadas e placas eram bem diferentes! Pareciam uns desenhos com traços curvilíneos, retos, uns pauzinhos apenas... Onde eu estava? Aqui é outro país? Não estou mais em Sun Paulo, não? Fiquei assustado. Perguntava-me essas coisas e tentava entender o que estava acontecendo (ou tinha acontecido comigo); tentava identificar algo identificável neste lugar irreconhecível. Tentei até falar com quem passava por mim, mas, como sempre, esses me ignoravam, passavam direto por mim... Certo. Ao menos eu era real e essas pessoas também. Fiquei um pouco mais aliviado ao pensar assim. Certo. Pus-me em movimento. Decidira explorar, perambular pelo lugar. Eu queria ver se reconhecia algo ou alguma coisa e, também, poderia encontrar alguém igual a mim: pessoas como eu sempre se trombam. Perambulei pelo lugar e percebi que era tipo um centro, um lugar-vórtice onde pessoas, muitas pessoas, se concentravam pra trabalhar, comer e/ou se divertir, passear. Era o centro de alguma coisa ou lugar, com muitos comércios de coisas e comidas que nunca tinha visto; era uma grande muvuca. As ruas eram sujas, irregulares as calçadas – coisas essas mui familiares para mim –, mas os postes de iluminação pública eram incomuns: eram estruturas metálicas pintadas de vermelho com três glóbulos brancos suspensos como lâmpadas; coisa esta bem característica do lugar, supus assim. Andei, andei e não encontrei ninguém igual a mim. Não vi ninguém na sarjeta, nem encostadas sentadas em muros, muralhas ou pedindo comida àquelas pessoas que passavam carregadas de pequenas porções esfumaçantes e cheirosas de comes e bebes coloridos. Não havia ninguém como eu ali. Impossível! Pensei isso assim, pois, em todo lugar, havia gente como eu. Meio transtornado, continuei andando pelo lugar. Encarei aglomeração e o trânsito local, tentando me afastar disso e deles tudo, afinal, quanto mais longe do vórtice, do vuco-vuco, pessoas como eu eram mais fáceis de serem encontradas. Não encontrei ninguém. Passei por ruas quase desertas e nada, nada de encontrar gente como eu. De repente, vi um beco doutro lado da rua! Senti-me logo mais esperançoso, pois beco é igual em todo e qualquer lugar, certo? O beco tinha um número, 385, e, bem próximo a ele, fixado ao seu lado esquerdo, havia uma placa escrita no meu idioma! Cuida-se de crianças, dizia a placa. Feliz da vida e meio afoito atravessei a rua. Quase fui atropelado pelos carros que, do nada, apareceram aos montes naquela rua donde estava o beco. Fiquei ali imóvel bem em frente à sua entrada. O beco parecia estreito. Uns fios, uns emaranhados de cabos se viam acima dele e bem próximo ao seu chão. Esse era bem irregular, cheio de buracos e pedras de argamassa e concreto solto. As paredes também eram mal acabadas, todas elas estavam descascadas. Enfim, era um beco bem comum mesmo. Ali, na entrada dele, dava para ver onde ele dava, quero dizer, dava pra ver a sua saída, o seu fim; parecia que esse beco dava para uma rua de barro, uma rua de barro vermelho. Não sei bem porquê, senti que era atraído para aquele barro. Sentia-me meio estranho, agoniado. O beco era um corredorzão, a luz do dia não entrava nele, não. O dia já estava quase no fim. Passei a tarde toda batendo perna por um lugar estranho e, de repente, me vejo parado numa boca de beco. O sol se punha. E parecia se pôr bem ali no fim do beco. Era estranho. Um estranho familiar. Quando dei o primeiro, o segundo passo pra entrar, uma escuridão sinistra me envolveu de súbito! Tremendo, continuei andando, ainda me apercebia dentro do beco. Meus ombros roçavam, arranhavam nas paredes descascadas conforme eu persistia em seguir em frente; tive que caminhar de lado a partir de certo ponto, o beco estava se afunilando. Não sentia nenhum cheiro e não ouvia nada, nem meus próprios passos e odor; ali, dentro do beco, só sentia a minha ofegante e aguda respiração: eu estava com muito medo. Cruzando a saída, logo me vi atolado no barro vermelho; uma brusca tempestade de areia me envolvia. De repente, um, dois, três trovões ouvi ali no ambiente; era um espaço amplo, muito amplo, parecia que eu não estava mais numa cidade grande. A uns metros a minha frente, um grande estrondo ouvi; o mar de lama, lodo onde eu estava se expandiu feito maré: algo muito grande, enorme caíra à minha frente... E foi aí que eu os vi: embolados um no outro, enormes criaturas semelhantes a serpentes se digladiavam entre si! Suas cabeças eram gigantes, pareciam de crocodilo; escamas reluzentes por todos os corpos eu via; seus chifres se assemelhavam aos de um cervo, longos, compridos, perfurantes; garras, unhas imensas se rasgavam ferozmente; um, tinha cinco, outro, quatro, e o outro, três; três monstros colossais tentavam se matar bem ali na minha frente!!! Terror medo desespero. Terror medo desespero. Terror medo desespero. Eu não conseguia me mexer! A cena que eu via era incrível por demais. E eles podiam me esmagar a qualquer momento. Aquele bolo, bola, aquela massa monstruosa de carne ensanguentada e escamada era mortal, mortífera, fatal. Os urros, os rugidos de força e dor que as volumosas criaturas vociferaram eram de causar pavor. Aquilo tudo não podia ser real. Era? Não não não. Absurdo insano pesadelo. E foi quando eu comecei a desmaiar que eu ouvi umas vozes bem no fundo da minha cabeça. Elas me diziam algo do tipo assim:

JIAO! IMOOGI! RYŨJIN!

JIAO! IMOOGI! RYŨJIN!

JIAO! IMOOGI! RYŨJIN!

Desacordado, submerso, mas, de alguma forma, ainda consciente, ouvi três vozes me chamando pelo nome:

VISHNU! VISHNU! VISHNU!

Aí, transformado, reconheci meus pares, meus irmãos; enfim estava em minha casa, nossa casa.



Observação

Conto confeccionado para o concurso Multiverso Pulp - Fantasia Urbana - v. 7 da AVEC Editora, mas, por NÃO atender a quantidade mínima de palavras, é disponibilizado aqui.


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