Há quem diga que viver vale à
pena. Verdade verdadeira. Porém, em tempos de bundões, ou de politicamente
corretos, viver se torna uma questão de prudência, sobrevivência. Quem arrisca,
petisca, mas morre cedo e muito mal. Vivemos tempos de grande exposição, mas
cuidar da própria saúde é necessário e muito recomendável. Não devemos vacilar,
regrados devemos viver, sem excessos e possessos. Contudo, se você é humano,
que nem eu, e não um robô programado por e para esta sociedade de agora, tu
deves cometer uns excessos. Falo sério. Viver é se arriscar, dar a cara a tapa
e aproveitar, gozar. Não tem como negar, existe por aí muitas coisas que nos faz
mal, muito mal. Mesmo assim, dentre essas coisas, tem outras que nos faz bem –
um mal que nos faz bem. O cigarro é um bom exemplo. Quem fuma sabe, não há
coisa tão tóxica que dá barato relaxante assim tão barata e de fácil aquisição.
A nicotina dá prazer, porra! Quer um exemplo melhor? Então, preste atenção no
meu causo. Próximo ao meu trampo, faz um tempo, andei reparando numa moça. Ela bate
um rango no mesmo restaurante que eu costumo frequentar. Reparei que ela come
de tudo, não tem frescura, mas come pouco. Ela não faz aquele montinho de
pedreiro, entende? Notei que ela come com calma. Parece até uma monja budista
quando mastiga sua refeição. Coisa essa realmente curiosa de se ver, diga-se. Contudo,
o mais curioso mesmo é o que ela faz depois do saudável almoço. Ela fuma. Bem,
até aí, nada de anormal, certo? Muita gente faz isso. Porém, ela o faz de um
modo assim sistemático. Ela saca de sua bolsinha uma pequena latinha. Nesta,
ela guarda seus cigarros devidamente embrulhados junto com os isqueiros
estilizados. Ela pega um cigarro do saquinho. Ela o cheira. Ela o acaricia como
se fosse uma iguaria única, rara que mereça um cadinho a mais de tempo pra ser
consumida, degustada. Ela põe o cigarro na boca cheia de batom, dá leves
mordidinhas nele, roda-o com a língua. Ela agita o isqueiro freneticamente. A chama
que sai é grande demais para aquele troço tão pequenino e cheio de combustível.
Ela acende o menino, enfim, e dá umas longas baforadas. Tudo de leve, numa boa,
demora pra tirá-lo da boca pela primeira vez. E ela vai nesse ritmo, fumando
com gosto, olhando para o nada, concentrada nas baforadas. Ela, às vezes, é lúdica.
Tem vezes, não sempre, que ela faz aquelas aureolas com a fumaça do cigarro,
sabe? Anéis de fumaça pelo ar. Muito habilidosa essa moça. E sabe mais? Ela gasta
mais tempo fumando do que comendo. Se o cigarro é a sobremesa, ela o aprecia
como prato principal. Se ela tem uma hora de almoço, não tenho certeza, mas,
pelo que reparei, em vinte minutos ela come, nos outros quarenta ela fuma. E sempre
só um cigarro, nada mais nada menos. Andei de olho nessa mulher e nesse seu ritual
diário por uns bons meses. Quando estava quase fazendo um ano de observação
contínua, não resisti mais e fui abordá-la com aquela desculpinha sacana de lhe
pedir fogo. Detalhe: eu não fumo. Comprei um maldito maço do mais barato só pra
fazer essa descarada abordagem. Acho que ela até desconfiou disso, quando
acendi aquela porra e me engasguei horrores quando eu dei as primeiras
baforadas... Enfim, puxei papo com ela e, poxa vida, até que foi agradável,
viu, apesar daquela fumaça tóxica e mortal nos envolvendo. Falamos sobre o
tempo, sobre o transito, sobre os protestos e sobre os cigarros, claro. Aí,
aproveitei a deixa e a interpelei sobre esse ritual diário dela e tal – eu confessei
que a observava. Ela me disse, na maior simpatia e boa vontade, que sofria de uma
doença terminal, tinha câncer na garganta. Assustado, fiz a pergunta idiota do
então por que dela ainda fumar todo dia. Ela me confessou que só fumava um,
justo aquele um cigarro por dia, e nenhum outro mais. Aquele era o seu único
prazer, o seu único momento especial durante todo o dia, nada mais. Ela me
disse isso com um sorrisinho triste, fraco e com os olhos meio que marejados de
lágrimas. Bem, acho que estavam marejados... Depois disso, ela pôs uns óculos
escuros. Consultou as horas em seu celular e me disse adeus, assim, de repente,
e com um beijinho seco na minha bochecha direita. Fiquei surpreso com aquele
gesto de carinho espontâneo e genuíno e meio que preocupado também, não
conseguia entender o porquê. Fiquei com aquela imagem e com uma sensação
estranha o resto do dia. Mal dormi à noite. Noutro dia, que era uma
sexta-feira, não a vi no restaurante de sempre e nem no lugar aonde ela costumava
sempre fumar. Fiquei ainda mais preocupado. Por sorte, ou melhor, por memória,
nesse tempo todo em que eu a fiquei observando, eu já sabia onde ela
trabalhava. Era bem próximo do meu trampo até, umas três quadras só. Passei lá
depois do meu expediente e, chegando lá, a porrada: ela tinha falecido. E naquele
mesmo dia em que eu finalmente a abordei, ou seja, ontem! Fiquei em choque,
baqueado pra valer. Depois me disseram mais coisas sobre ela. Ela tinha a mesma
idade que a minha, morava só, não tinha filhos, os pais já tinham morrido, os
parentes, todos, estavam espalhados em outros países e, se tinha amigos, eram
muito poucos ou quase que nenhum, desconhecidos. Ela era muito fechada,
reservada, não tinha uma turma pra chamar de sua. Tentei saber do enterro, mas ninguém
sabia de nada. Passei o fim de semana pensativo. Eu era muito parecido com ela,
afinal. Eu também estava sozinho nesta terra, nesta vida. E na segunda-feira
seguinte, depois do meu almoço, eu comecei a fumar. Fumo só e unicamente um
cigarro por dia, nada mais nada menos que isso.
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