Nunca acreditei nessas coisas do além. Pra mim,
espírito, assombração eram coisas da imaginação, da mente criativa demais ou da
debilitada de menos. Pra mim, quem me dizia acreditar e ver essas coisas, era
doida, gente de pouca fé, falastrona. O imaterial, pra mim, sempre foi algo de
cunho filosófico, ou seja, era papo-cabeça, assunto trivial e descompromissado
no campo das ideias; uma especulação gratuita sem o rigor acadêmico de estudos
probatórios e sérios. Era uma diversão apenas, nada mais ou menos do que isso.
Eu achava ridículo, sinceramente, quem me dizia sentir medo dessas coisas. Até
entendia o motivo disso, afinal, quem crê, medo tem. O medo é essencial, para
nós, seres vivos. É ele que nos mantém alertas, espertos, ou não, diante do perigo,
do desconhecido. Tenho medo, admito, como todo o mundo têm, porém, não tenho
medo dessas coisas, ou melhor, eu não tinha...
Deveras, após a minha última contenda, comecei a temer essas coisas, pois eu vi
o próprio diabo no corpo constipado da tia-avó da minha mulher! Ex-mulher,
melhor dizendo. Depois do ocorrido, a separação foi inevitável. Legalmente
ainda somos cônjuges, porém considero a lei dos homens inútil diante do fato
que me sucedeu. Sou sozinho, mais uma vez. Naquela época, eu também o era quando
conheci a minha ex-mulher. Nos conhecemos por meio de amigos em comum. Logo que
fomos apresentados, nossos olhos se fixaram. A atração foi mútua e, até
começarmos a trocar mais do que sorrisos e piscadelas, um bocado de meses se
passou. Isso foi bom. Antes de engrenarmos em algo mais sério, nos tornamos
amigos sinceros. Nosso papo era agradável. Falávamos de tudo um pouco. Tínhamos
divergências em alguns assuntos, mas isso não diminuía o respeito entre a
gente, ao contrário, de minha parte, eu a admirava mais por causa disso. Acho
que todo relacionamento, pra durar, pra ser feliz, tem que se basear no papo,
naquilo que um tem pra complementar no outro que não tem. Diálogo é tudo. Por
isso, agora, entendo um detalhe curioso. Nas conversas que travávamos, ela, a
minha ex-mulher, sempre desconversava quando o assunto era a sua tia-avó. Elas
moravam juntas e, sempre que eu a interpelava sobre isso, ela era vaga, não
entrava em detalhes. Eu não insistia muito no assunto por não ver, na época,
nada demais. Também nunca fiquei encucado com isso. Eu achava a atitude dela
até normal, afinal, aborrecimentos: quem é são, evita-os. Contudo, hoje entendo
tudo. Havia ali uma mazela, uma dor escondida com carinho no coração. A tia-avó
dela era o cão! Só me dei conta quando, depois de nos enlaçarmos, fomos morar
na casa dela, com a tia-avó dela. Antes, eu já tinha conhecido a velha e,
nesses poucos encontros, não notei nada demais na senhora. Ela parecia “fora da
caixinha”, isto é, quando conversávamos com ela, ela dizia umas coisas meio sem
sentido, coisas que nada tinham a ver com o assunto da conversa. A tia-avó dela
falava muito da condição física dela. Ela sempre reclamava que estava muito
doente e que sentia muita falta dos tempos de antigamente... Tudo para ela era
dor. Aliás, ela vivia se queixando de horríveis dores pelo corpo. A velha tinha
dor de cabeça, nas costas, na bacia e nas pernas. Doença, dizia ter várias. Só
me lembro da osteoporose e do enfisema. Desse último, lembro bem porque, mesmo
se dizendo enferma, ela ainda teimava em fumar um maço de cigarros todo santo
dia. No mais, era apenas uma senhora idosa com suas manias e necessidades
naturais. Mas tudo mudou quando eu e minha ex-mulher fomos morar junto dela. A
velha se tornou outra quando começamos a dividir o mesmo teto. Se antes tudo era
tolerável, a velha fez tudo ficar insuportável. Ela era teimosa demais! Não
ouvia nada do que a gente lhe dizia, só falava, falava e discutia, não existia,
na casa, harmonia. Tudo que fazíamos era um problema grave para a velha. Se
comprávamos mantimentos para a casa com o dinheiro dela, ela reclamava, achava
que tudo era muito caro, criava caso e gritava na nossa cara “seus burros!”.
Porém, se gastássemos o nosso dinheiro, ela não falava nada, ficava quieta,
fingia um agradecimento sincero. Comprar remédios para ela também era por aí.
Só queria os de certos laboratórios e dizia que os outros de outros não
prestavam. Várias vezes voltávamos na farmácia para trocar os emplastos, as
pílulas e as ampolas que ela usava diariamente. Eu e minha ex fazíamos tudo
isso para contribuir com a vida na casa, afinal, a residência era dela, da
velha, e, como éramos recém-casados, pousar ali era o melhor a ser feito
financeiramente, até que a minha ex e eu conseguíssemos uma morada própria. A
vida na casa com a velha era um inferno! Entretanto, minha ex e eu fomos
levando, aguentando tudo juntos, pois não tínhamos para onde ir. A velha,
durante o dia, era irritante, inconveniente e má, contudo, o pior mesmo era à
noite. Na casa, só havia um quarto. Esse era dela, somente da velha. Eu e minha
ex dormíamos num sofá-cama maltrapilho na sala, que era ao lado do quarto da
velha. Essa ia dormir cedo e, quando ia, trancava-se sozinha. E lá, só consigo
mesma, exercitava o desagradável hábito de falar sozinha em voz alta. Da sala,
dava para ouvi-la reclamar do dia e da gente. Era muito incômodo ouvi-la assim
no seu monólogo. Parecia até uma confissão com alguém invisível ou uma forma de
desabafo consigo mesma. Minha ex já estava acostumada, mas eu não achava normal
aquilo. Quando a velha enfim se rendia ao sono, o nosso sossego durava pouco: a
velha falava também durante os roncos! E falava muito. Falava em nosso idioma e
em um que nunca ouvira. Geralmente esse bate-papo noturno era sobre o seu
passado. A velha falava uns nomes, uns lugares e umas situações que não
condiziam com o tempo presente. Minha ex me explicou depois sobre esses fatos
passados. No entanto, sobre o idioma estrangeiro desconhecido, desconversou.
Disse-me que eram só uns sons indistinguíveis que a tia-avó dela, e a gente
também, emitimos quando dormimos profundamente. Não me satisfiz com a sua
resposta, mas a acatei. Todas as noites eram essa tortura sonora. Após alguns
meses, acabei me acostumando com essas coisas. Quem ama, consente. Porém, teve
uma noite em que acordei de sobressalto. Estava eu quase me entregando de vez
ao sono, quando os barulhos noturnos se tornaram mais graves e estranhos...
Parecia até que havia um homem no quarto da velha! E essa gemia e balbuciava
aquele idioma estrangeiro. Levantei do sofá-cama num salto. Minha ex ainda
dormitava. Abri a porta do quarto, imaginando algo tipo assalto, mas vi algo
absurdamente pavoroso: vi uma criatura escura toda escamada, de caninos
inferiores salientes e de cabelos desgrenhados sobre uma velha pálida e
sorridente! Fique paralisado. De medo, óbvio, e de horror. Só de lembrar, tremo
todo. Diante do coito grotesco, congelei. Logo em seguida, uma força, vinda de
sei lá onde, me empurrou pra fora do quarto. A porta se fechou num estrondo. Caí
no chão da sala e, ainda ali, vi, na penumbra, a minha ex-mulher sentada
encurvada na beirada do sofá-cama, salivando abundantemente algo negro e
viscoso pela boca escancarada de forma anormal... Não sei bem como, de onde
tirei forças, mas fui me afastando da cena asquerosa e insana. Fui me
arrastando de costas até uma janela próxima enquanto aquela coisa me encarava
torta e pulei. Desembestei nu pela rua e nunca mais voltei a ver aquelas
mulheres. Quem ouve a minha história, não me acredita e ainda me diz que sou de
ladainha. Mas é real. O tinhoso é real. Eu conheci a mulher dele!
Obs.:
conto NÃO selecionado para o Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror
do blog Contos de Terror e da Free Books Editora Virtual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário