quarta-feira, 14 de novembro de 2018

[RESENHA]: ANTES QUE ACABE, DE JOÃO GALERA

Capa do livro Antes que Acabe, de João Galera. Mandacaru, 2016 / Foto: Bruno Oliveira 


Provavelmente, quem folhear o livro Antes que Acabe, do artista plástico João Galera, ficará surpreso em ver o que já viu em algum momento andando pela cidade de São Paulo. Os desenhos em nanquim que recheiam o livro remetem o leitor-observador àquela lembrança e/ou àquela sensação de déjá vu que acomete quem vê e/ou presencia algo que já viu e/ou experimentou.

O livro, ou melhor, o caderno de desenhos do artista contempla três bairros paulistanos: Bela Vista (o mítico bairro do Bixiga), Vila Mariana e Pinheiros. O primeiro fica no centro expandido, os demais na zona oeste da cidade, mas, pro flâneur esperto, que conhece mais bairros da pauliceia, notará que as fachadas presentes no livro parecem com alguma casa que ele já viu em alguma rua de seu bairro. Essa sensação familiar não é gratuita, nem teoria da conspiração, a casa típica dos bairros da cidade pode ser resumida numa palavra: sobrado.

Logo na introdução, o artista explica: “o sobrado com janelas para a rua, o chão de cacos vermelhos, a geometria de arcos, as pequenas colunas, o jardim atrás...” (pág. 07) ou na frente. A maioria das casas desenhadas são sobrados, sobradinhos de um, dois andares no máximo. E é muito curioso vê-las aqui retratados, pois, essas casas, revelam algo que é ou era próprio do paulistano de raiz — leia-se: paulistano das antigas, velho mesmo.

Comecemos pela Bela Vista. A cada página que se vira, vê-se o que se inverteu: há tijolos aparentes na fachada, aqueles tijolos laranjas típicos dos empreendimentos dos Matarazzo; há um portãozinho de entrada na rua, que dá pra uma escadinha e, aí, só depois se bate com a porta da casa; há janelas, muitas janelas, daquelas que se abrem com os dois braços, como se, ao abri-las, estivéssemos abraçando o mundo de fora; há árvores também, logo na frente, umas grandes, enormes, outras pequenas, mas presentes; há cercas sim, porém, baixas, a gente não vê muro escondendo as casas, parece até que elas eram pra serem vistas mesmo e não isoladas, escondidas; há porão em algumas, dá pra ver as janelinhas rentes ao chão da calçada; há portas compridas, muito longas, como se ali fosse residência de alguém muito alto e esguio — Nosferatu, é você?; e há grades de metal também, muitas delas se veem sobre as janelas e algumas portas, denunciando a grande preocupação com a segurança particular. Se antes a frente da casa era um lugar de se bem receber, agora quem aparece não é mais bem-vindo, ao menos é isso que se percebe ao ver esses desenhos – quem será a pessoa que insiste em pôr uma cadeira do lado de fora, bem debaixo da árvore na rua Adoniran Barbosa (pág. 17)? 

Páginas 14 e 15 / Foto: Bruno Oliveira

Página 16 / Foto: Bruno Oliveira

Página 19 / Foto: Bruno Oliveira

Páginas 24 e 25 / Foto: Bruno Oliveira

Páginas 26 e 27 / Foto: Bruno Oliveira

Página 17 / Foto: Bruno Oliveira

        Nos desenhos da Vila Mariana, o que mais assusta é as dessemelhanças: uma casa, dividida e suas assimetrias. É natural ver por aí casas diferentes uma da outra. Contudo, essas do bairro se destacam justamente pela divisão. A casa, em sua essência, na sua construção era una e, após algum incidente, foi partida, dividida para abrigar mais gente de outra família. As assimetrias se notam nas cercas escolhidas por cada morador ou na retirada ou acréscimo posto na fachada, em alguma parte da casa. Fica óbvia a diferença, você intui que de um lado mora um e no outro, outro. Mesmo assim, apesar da perda notável, é bom ver que as diferenças convivem. Isso também se apercebe na mistura de estilos arquitetônicos utilizados. A maioria das casas que se veem faz referência àquele estilo colonial português. As telhas, as pedras, os arcos e os azulejos denotam isso. Porém, há também casas mais modernas, em art déco até, convivendo ao lado ou na mesma fachada de uma casa. Essa mistura não é só característica dos paulistanos, mas sim do Brasil inteiro.

Página 42 / Foto: Bruno Oliveira

Página 44 / Foto: Bruno Oliveira

Página 40 / Foto: Bruno Oliveira

     Os desenhos de Pinheiros são mais numerosos. Neles há mais fachadas/casas em estilo moderno, limpo, sem muitos detalhes. Outro ponto importante é a quantidade de janelas abertas que se veem. Se nos bairros anteriores eram uma ou outra, neste são quase todas. Vale mencionar também algumas singularidades. Em algumas casas, dá para ver o registro de água aparente bem rente à calçada da casa; dá para ver também uma antena antiga de televisão; e, em quase todos, a antiga garagem do imóvel, dá lugar a um comércio, ou sempre foi comércio, vai saber.

Página 52 / Foto: Bruno Oliveira

Página 54 / Foto: Bruno Oliveira

Páginas 56 e 57 / Foto: Bruno Oliveira

Página 58 / Foto: Bruno Oliveira

Página 61 / Foto: Bruno Oliveira

        Por fim, vale mencionar ainda o guarda-sol solitário da rua Bianchi Bertoldi (pág. 78) — seria ele de algum estabelecimento comercial, uma propaganda ou o morador o colocou lá para desfrutar da vizinhança? Fica a dúvida, mas também, a certeza de que há uma tendência em resgatar aquele clima de bairro bucólico por parte dos moradores, e não só das empreiteiras interesseiras, que os destroem para levantar torres e bairros ditos exclusivos.

Página 78 / Foto: Bruno Oliveira
       
        Ao fim do livro, ou dessa viagem no tempo, percebe-se o quão foi e é importante esse trabalho do autor João Galera. Como ele mesmo disse, esse trabalho é um resgate e uma resistência. O último desenho ilustra bem isso: “essa não deu tempo...”. Contudo, para destoar do tom melancólico que essa última figura remete, atenha-se, por favor, a casa-árvore da Fradique Continho (pág. 79). Lá, o teto são folhas e de baixo da janela sempre haverá um grafitti indicando o caminho.

Página 82 / Foto: Bruno Oliveira

Página 79 / Foto Bruno Oliveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário